segunda-feira, 23 de junho de 2014


28
Voltar a escrever na areia da praia as cartas ao presente. É preciso desistir da glória, com grande fervor - é preciso recuperar o escândalo, o berro no meio do caos de espuma e corpos rolando à mercê do movimento caótico das marés mais fundas a inventar essa efêmera flor d'água mutante: a onda abruptamente erguendo-se, explodindo sobre si mesma.



segunda-feira, 16 de junho de 2014


ENTRE O SONHO E O MAR

25 
Eis o cara que fica aqui fora, que anda por aí sozinho, que ainda espera que você saia de sua bolha, de suas panelas confortáveis - ainda espera que você interrompa bruscamente suas conversas de sempre e depois diga algo que seja, que me desloque para...

Colecionador de frases feitas, caras pálidas e olhos insones, o sujeito se manda e mergulha na praia de areias mornas, de água gelada com restos de algas e águas vivas.

O ministério da saúde o advertiu: trabalho demais faz mal à saúde, trabalhar não permite que se observe o brilho fugidio dos grãos de areia molhados pela água do mar refletindo as cores mutantes do céu de outono.

Cada vez mais convencido de que nos sonhos vem o delírio humano mais puro, a poesia mais aterradora - como a comunicação indireta entre um ser e outro, em um átimo de segundo, um olhar desnudo sem barreiras alfandegárias, sem revistas obrigatórias.


terça-feira, 10 de junho de 2014


O SUJEITO EMERGE DA ANESTESIA


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Acordo, a água gelada na cara, um tapa nos olhos, descongelar a visão, devolver a mim mesmo o olhar que deixei fugir.

Rivotriste é um nome adequado: ele tira teu sorriso por vinte e quatro horas, tudo vai ficando sem ondas, sem cor, sem tempo ruim, sem tempo nem cabeça de pensar.

Emoção alguma irá te afetar de modo algum durante um bom tempo - essa também pode ser  a função da masturbação: criar uma geléia amorfa de sexo virtual em sua mente com memórias demais. Encha essa cabeça com notícias do livrinho azul.

terça-feira, 3 de junho de 2014

MADRUGADA

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Agora é o fluxo, me convenço. Deixar os sensores ligados, as pistas que se desdobram. Sonho de infância, insetos verdes na caixinha, crianças más que adestram insetos cheios de protuberâncias no corpo, cada vez mais treinados para fazer o mal. Penso em abrir a caixinha, abrir o chamado livro de caras, ver se a luz verde dela anda acesa,  contar do pesadelo na madrugada, correr o risco de bancar o maluco perturbado, perturbador.

O menininho tinha medo de formigas, tinha pavor, berrava muito, fingíamos que tínhamos formigas entre os dedos, jogávamos formigas imaginárias dentro da camisa do menino, ele tinha certeza que as formigas picavam sua pele branca e vermelha


domingo, 1 de junho de 2014


13
Anda pelo mundo tropeçando, todo mundo caindo, alguns novamente levantando - anda pelo mundo e não te deixam passar, mas segue indo, ainda vou te achar um dia, quem sabe desprotegidos.

Reencontrar a flor da pele em algum lugar por baixo desses óculos escuros, em alguma outra fina pele embaixo das tantas jogadas por cima do frio da existência, da sobrevivência.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

SOBRE O MURO

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Explosão: realmente ficando difícil, quase chegando,  é preciso abandonar os trabalhos que se justificam só pelo dinheiro.
 
Ser normal é ser mais um tijolinho no grande paredão opaco.

O muro deve ser posto abaixo, mesmo que por ora aproveitemos sua aparente solidez para apoiar o corpo cansado.

Use o muro, mas não seja seu amigo: ele só está ali para impedir sua visão, bloquear sua passagem.

terça-feira, 13 de maio de 2014


APONTAMENTOS NUMERADOS


3
O sol de outono da manhã faz carinho nos póros da pele - teus olhos de olheiras não se incomodam mais  com a luz morna.


O tempo virou, a chuva é ainda melhor que o sol, as nuvens tornam tudo sombreado. As pessoas ficam dramáticas na chuva, as pessoas ficam molhadas.

Viva a poesia dos incômodos chuvosos, dos encontros sob a marquise com goteiras - viva o compartilhamento de guarda-chuvas.

Que o sol central imperial possa tirar folga todos os dias, viva os odores que sobem quando a chuva explode.

O que vale é a intenção, tudo bem com a solidão, derramei um gole de gengibre pro teu santo.





quarta-feira, 16 de abril de 2014

AULA DE HISTÓRIA

Oitenta deserdados comem sopa 

cercados
oitenta resistindo ao frio e à chuva
enfileirados embaixo da marquise
sentindo um tanto de fraqueza
um tanto de revolta

Não pensam em mudar o mundo

pois não fazem parte dele

Oitenta seres de carne, osso, olhos, bocas

cercados
hereges, desviantes
blasfêmias ambulantes
conspurcando sem saber a única religião universal do tempo
a Santa e Sagrada Propriedade

A eles o rigor da Lei

com suas luzes piscando e passando
em frente à ocupação desocupada
como urubus à espera da falência 
de um corpo moribundo

domingo, 13 de abril de 2014


CHAMADAS DA MANCHETE DA REVISTA ISTO É

Pesquisas defendem o uso de remédios para acabar 
com a paixão
descubra quando o amor pode virar doença
saiba por que ele pode ser considerado um vício


sexta-feira, 11 de abril de 2014


GUDENGO

Seu José Christo vive em uma ilha entre o rio e o mar, no estado do Pará.

Vulgo Gudengo, conhece a lenda de cada peixe, e conta em formato de piada.

Gudengo canta cantigas em voz fanhosa, improvisa poemas e repete histórias fantásticas que não sabe de onde vieram (provavelmente de sua cachola inquieta).

Gudengo desliza pelas pedras com suas botas de cano alto e começa a chamar as garças pelo nome.

Gudengo foi uma vez à capital. Não gostou do que viu. 

Gudengo se diz católico & evangélico, mas não pisa em igreja nenhuma, acha que todas são tontices humanas.

Sobre Gudengo, pairam histórias obscuras em seu passado, mas ninguém tem certeza de nada.

Gudengo tem um olho pra cada lado, mas os dois olham pro mesmo céu quando surge uma lembrança da mulher: a antiga esposa, cujo cheiro ele já não lembra.

Gudengo tripudia do real, mas fica amigo dos peixes que come. Ele os encontra todo dia em um curral de pesca, pela manhã, na maré vazante.




terça-feira, 18 de março de 2014


PRIMITIVO

Meio careca
tatuagens antigas, desbotadas
e passos ainda estrondosos
me anuncia sua revolta
com um sorriso reconhecível, de lado
e aí eu fico pensando
qual é o sorriso que tenho pro mundo?





ESCURIDÃO


Ontem tive um pesadelo. Casei com uma viúva, a mais linda mulher do reino. Ela acordava à noite com olhos arregalados e sumia. Ela era riquíssima e tinha quadros góticos nas paredes de seu palacete medieval. Em frente à casa havia um lago, onde eu me via deslizando sobre as águas. Eis que de repente não vejo mais nada, o breu preenchia todo o espaço. Eu não sabia como parar e as palavras de uma vidente me obcecavam. Naquela noite alguma coisa aconteceria, o escuro aumentava, um berro foi ouvido na vizinhança, os cães começaram a latir.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014


I - ATIVIDADE VAGABUNDA


A palavra "vagabundo(a)" não é sequer um palavrão, embora seja utilizada como xingamento: sinônimo de ladrão ou prostituta. Vagabundo é também tudo aquilo que não presta ou não funciona corretamente. Vagabundear é não fazer nada, é fazer coisas que não são remuneráveis nem tem valor social reconhecido. Um  vagabundo não orienta sua vida em função de uma carreira ou do desejo de estabelecer coerência entre as várias atividades de sua história ou de seu presente.

Antes de ver o vagabundo como individualista ou "perdedor", pense nos belos frutos do ócio, ou então perceba a função ecológica de um vagabundo autêntico. Além de manter o próprio corpo fora da exploração geralmente cruel proposta pelo mercado, ele costuma consumir pouco e produzir pouca poluição, além de frequentemente reciclar o lixo alheio: aproveita as sobras, os objetos "inúteis", comparece a eventos gratuitos que outros desvalorizam ou ignoram. A própria ideia de "utilidade" lhe parece estranha. Seu futuro é algo distante, impalpável. 





terça-feira, 4 de fevereiro de 2014


UM CORPO QUE CAI

Kim Novak, não vá
Kim Novak, não caia
Kim Novak é a loura mais gelada
já inventada por Alfredo
culpada pelo Amor
que lhe salvou
lançada lá do alto em sacrifício
no meio de um beijo
quando um pássaro corvo na sombra surgiu
pássaro algoz lhe assombrou, de cruz no peito
fetiche destroçado 
mulher fantasma 
sinal do além


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014


AMOR CATÓLICO


Me apaixonei pela CDF da classe, a doce Patrícia. Pele alva, longos cabelos negros e notas máximas: era a chamada “primeira aluna da turma”, sempre observada por um bando de pré-adolescentes mal-ajambrados (que nunca se cansavam de fazer gracinhas e inventar apelidos - o que hoje certamente seria tipificado como “bullying”).

Lá no fundo todos se derretiam com seus gestos delicados, com as intervenções brilhantes - que contrastavam com a voz fina e trêmula. Ninguém até então havia tido o privilégio de vê-la tirando os óculos fundo-de-garrafa, que já faziam parte de sua mística, de seu mistério.

Em certo dia chuvoso eis que vi Patrícia deslizar solitária para o canto do pátio, após a sirene que determinava o fim do intervalo de recreio. Ela não havia percebido que eu a observava, escondido atrás de uma pilastra. De repente levantou o rosto e pude vê-la: absolutamente vesga, assustada, olhando em minha direção. Os olhos estrábicos - repentinamente desnudos - me atingiram de forma violenta.

Ela recolocou os óculos desajeitadamente, arrumou o crucifixo entre os seios e fingiu não me conhecer. Tentou recuperar sua correção impoluta, seu ar determinado, sua aura celestial. Para mim, no entanto, nada seria como antes. Não parava de espiá-la, perdidamente apaixonado. 

Então cometi o primeiro pecado, a ser confessado antes da Primeira Comunhão: desejei que ela levasse um tombo, que seus óculos se espatifassem, que ela ficasse vagando pelo pátio, tonta e vesga – eu seria o primeiro a socorrê-la e a libertá-la, mostrando que só eu entendia sua poesia, sua fuga, seus olhos dissonantes.





quinta-feira, 23 de janeiro de 2014




SONHO EM RÉ

Febris requebros
meio-dia
alucinada gritando
caralhos
todo mundo foi rendido

sonho quedas glamurosas
desmaios abatidos
rio que se derrete
não, mas não
não fuja da raia

picolés alucinógenos
viram cáctus alucinados
de espinhos dançando
sangrando
minha língua peçonhenta
queimada, queimando
este poema interrompido pelo sol


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


NOTÍCIA REAL QUE DEU NO JORNAL

O porco-espinho subiu no poste
o porco-espinho caiu de costas
o porco-espinho caiu sobre o couro
cabeludo da mulher que passa
encheu sua cuca
de espinhos e dúvidas
criou com ela um novo punk hair style

O porco-espinho subiu no poste
crivado de espinhos e dores de amor
se jogou lá do alto 
e não se matou
amparado pelos cabelos macios
bem tratados
com condicionador