sábado, 28 de dezembro de 2013


MODO CORRETO DE SE OUVIR MÚSICAS EM INGLÊS


Ótimo ouvir músicas em inglês sem entender a letra, imaginando altos lances, pura poesia sonora com significados ocultos - o melhor é não traduzir e não entender. Hoje fiz essa bobagem com uma canção querida e obscura. Me arrependi amargamente. Toda a aura se perdeu, toda a graça que eu via na letra (por não entender o que o cantor cantava) foi embora ralo abaixo. Aprendi.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013



A NAVE GIRATÓRIA

Retire do saco segurando pelas bordas, de modo a não engordurar a superfície esculpida, de profundezas quase invisíveis. Passe a flanela e sirva no prato do aparelho. Levante o braço, desça a agulha, trinta e três rotações e meia a cada minuto, é possível contar. Deixar-se levar pela nave giratória, com parada obrigatória entre as duas faces, quando é possível ler no selo a autoria das próximas faixas. Voltar a se surpreender com a geringonça funcionando, o milagre palpável do registro e da reprodução do Som.




domingo, 22 de dezembro de 2013


NO MEIO DA FOLIA

A essa altura do campeonato
é só isso que pode me salvar
a calma intensa
a dor colorida
tudo eu posso transformar
em uma nova rebeldia
eternamente outros
nosso tempo é já
nossa luz é fogo
eu não sei o que virá



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013


GRATIDÃO 

Me agradeceu por eu ter ressuscitado
o seu desejo     
que ela julgava morto e enterrado

me agradeceu
e eu lhe agradeci muito por ela ter 
me agradecido

me agradado 
com seu agrado
com seu afago
com seu desejo 
recompensado
ressuscitado

sábado, 14 de dezembro de 2013


MARX PARA CRIANÇAS

A economia de mercado é uma economia de troca. Você troca o seu trabalho por um punhado de dinheiro, que você troca pelo trabalho dos outros (que também produzem produtos e fazem fazeres).
Seria um círculo razoável, mas o detetive Marx desvendou o mistério do buraco gigante (entre o seu trabalho e o trabalho dos outros) por onde se escoa a maior parte dos dinheiros que você trocou pelo seu trabalho. Tais dinheiros são arrancados diretamente do seu tempo, do seu sangue, do seu corpo.



terça-feira, 10 de dezembro de 2013



ORDEM NA CASA

Nossas regras andam deveras inconciliáveis
nossos olhares não tem sido muito compatíveis
discutiremos relação
com muita calma e disciplina
não tomaremos decisão 
precipitada ou suicida
nada de impulso
tudo muito bem entendido
nosso contrato foi escrito
nosso contrato
nosso contato
prescrito

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013


A PRAIA DO DIABO MOLHADO FERVENDO AO SOL 

A zona sul é uma vertigem
zona sul é muito cara
zona sul é muito branca
zona sul é o sul da zona
zona sul já me expulsou
zona só ao sol fiquei
onde os cães jogando areia em minha cara fazem festa
fazem zona com os colegas com a cadela que é do cio
fazem zorra e cavam tudo e cagam muito ao céu de anil
e jogam merda jogam bola 
frescobol na minha testa 
e no cabelo vem areia 
vem amor 
e o guarda chega guarda-sol da dona sai 
voando e vai e o fio
dental é o fio normal é o fio dental é o sal e o sol
a praia toda ao céu queimando
a pele eu curto ao sol eu fico
é tanta dor se desmanchando
é tanta cor no céu de anil 
é tanta onda em nosso rio 
e a zona sul é a zona céu e o sol do rio não é daqui




terça-feira, 26 de novembro de 2013



 O CORPO VAGO

  Já ouviu falar do corpo?
 o corpo é minha mãe
 meu início
 o corpo é tudo que eu tenho

 mas também é o nada
 que não tenho
 é por isso que a morte não existe
 no carnaval eu descobri

 o carnaval guarda um segredo
 sobre o corpo, esse festival
 de carne, água, fluxos, sangue
 memórias, afetos, odores
 o para além
 o despautério
 delírio bastardo
 corpo vadio
 corpo vago

domingo, 17 de novembro de 2013



 FRONTEIRAS

  Puro arco
  portal imenso
  portão sujo
  fronteira aberta
  entre a Lapa e a Lapa
  entre a festa e o sonho
  pura passagem
  entre a noite morta
  e a musa rediviva
  pura ponte
  puro túnel
  há uma nova claridade
  na cidade impossível
  de retas que convergem 
  ao absurdo 
  de curvas que suscitam
  suscitam
  suscitam

terça-feira, 5 de novembro de 2013


A BLUSA DE ONCINHA NO SAMBA DO SEU CLÁUDIO


Parou no balcão do bar, se viu no espelho, voltou a si. Começou a sentir-se um europeu de segunda mão, um imitador barato de um estilo e de um mundo que não cabiam naquele bar. Entendeu também que suas categorias mentais não se aplicavam àquele lugar. Percebeu que havia ali uma selvageria que lhe escapava, uma febre incendiária a contrapelo de todas as tentativas midiáticas e governamentais de implementar a disciplina familiar nos cidadãos, o respeito contido, as boas maneiras e os conceitos politicamente corretos. O movimento eloquente da moça com blusa de oncinha e o seu sorriso genuíno lhe convenceram dessas coisas.

  

domingo, 3 de novembro de 2013


O DIA DE PERDER O REBOLADO 

Todo malando um belo dia
esbarra com certa mulher:
mais malandra que ele
mais safada que ele
mais esperta e engraçada que ele
desfilando a ginga 
mais gingada que a dele

terça-feira, 29 de outubro de 2013


A ÚLTIMA FOTO DO VELHO LULU

Os velhos nos lembram
que a gente também vai ficar velho
(cacete)
eu também vou ficar velho?
(cacete)
a cara de um velho passa a ser assim
a incômoda lembrança de nossa velhice futura
os velhos não lembram de muita coisa
nós também não lembramos
que vamos ficar velhos
(cacete)
melhor assim

                              Cacete!

domingo, 20 de outubro de 2013


AMOR

De repente se pega ouvindo elton john amarradão, se comprometendo a visitar pessoas, oferecendo dinheiro emprestado a desconhecidos, esquecendo o caminho de casa, deixando batatas no fogo até virarem suco.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013


CRUZ OU ASAS  

Ela me olhou arrastando-se pela parede
ela fez olhos tristes que caíam com a tarde
ela parou em minha frente no meio da festa
ela olhou a minha testa e depois um direto
no meio do nariz, seu olho reto
ela fugiu do meu beijo, depois agarrou meu queixo
e depois de me provar fez nas mãos sinal de já deu
e se foi
pro outro lado da festa, pro outro lado do mar
se agarrar com outras pessoas, sentir o gosto 
de outras línguas, sussurrar em outros ouvidos
coisas que não imagino
só depois me lembrei do que ela me disse
que o seu nome começa com um tê 
e que isso é uma cruz em suas costas
que ela carrega até um dia
pois quer sair do próprio nome, do próprio corpo 
deixar pra trás a escritura, a tortura de ser um




sábado, 5 de outubro de 2013


A CASA TOMADA II


De repente percebi que morava em uma casa enorme, com um jardim selvagem e trepadeiras subindo pelas paredes. Um amigo pediu pra ficar um tempo e então percebi: eram três amigos. Festas diárias, reuniões políticas, eu me sentia importante e admirado. Alguém espalhou o boato de que eu seria o líder de uma comunidade hippie. Todo dia chegava alguém com uma nova ideia ou saber.

Em certa manhã chuvosa fui revirar os papéis, procurar a escritura, ter certeza de que a casa era minha. 

Me deparei com a cena desoladora. As traças tomaram o armário e o baú de documentos desapareceu. Foi nesse dia que percebi: não era uma casa, eram duas! Planejamos uma grande festa pra comemorar o fato, nunca me senti tão feliz. Foi durante a festa que descobri que as construções não eram germinadas: havia uma ponte que permitia a passagem. Em seguida avistei um grupo de índios a utilizar o espaço, organizando seus rituais bem em cima da ponte. A partir desse instante, eu sempre teria que esperar o intervalo entre as pajelanças a fim de cumprir minhas necessidades fisiológicas e alimentares, já que a cozinha ficava em uma casa e o banheiro na outra.

De repente me endureci, me dei conta de que a propriedade efetiva do imóvel estava ameaçada. Como eu faria se quisesse vender a casa? Teria um trabalho imenso para expulsar tanta gente. Lembrei dos papéis, eles haviam desaparecido! O incômodo veio junto com o medo. Ao ter que atravessar a ponte, reparei na cara vermelha de um dos índios. Seu rosto parecia tenso e sua lança afiada demais. Cismei que eu teria de pronunciar uma palavra pois era ela que me abriria o caminho, permitiria a passagem. Inventei uma expressão: ABRADANGA BURUNDANGA! Em câmera lenta, o índio levantou a lança. Não esperei a conclusão. Saltei no vazio, como se tivesse asas.



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

    POETA PANDA ADOECIDO

   Difícil é cair no mundo de verdade, abrir espaços no real a porretadas de poesia, difícil é se integrar às pessoas de um modo menos raso, mercado-lógico.  Nada fácil, mesmo que seja um dia de ócio e passarinhos. Há mais de um mês ninguém lhe toca, suas mãos não conseguem tocar alguém, seus poemas lhe parecem quinquilharias empoeiradas.

  E que se danem seus poemas, ele queria era ter os arroubos poéticos de outro tempo, a sensação de estar vivo, as eletricidades dançantes, o humor que vinha de graça.


  Esquisito como um urso panda adoecido, um jacaré partido ao meio. Não vislumbra efeitos, gira em torno de idéias. A vida pede: mexa tudo em torno, se livre de tanto pensamento. Só a desistência parece fazer sentido. E quando ele surge (um abandono radical do futuro, o fim de tanto projeto) sente algo inflando o peito: janelas vão se abrir, as perguntas simples vão voltar, o dia de hoje.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013


FATAL

Ela parece um gato, ou uma cobra
me ataca de repente, do nada
estica uma perna em minha direção
quase me toca, enquanto se estica
como apontasse uma seta
ou um dedo em meu peito
ela me tira do sério
me tira dos eixos

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

AULA DE MORAL E CÍVICA NO INSTITUTO ABEL

("O TÓXICO LEVA AO SEXO, O SEXO LEVA AO TÓXICO")


Você conhece a velha mentira do diabo. Um pouco não faz mal! Ele sempre começa com um pouco: um pouco de bebida, um pouco de fumo, um pouco de farra. Assim por diante. Começei tomando uma cerveja. Cerveja parece tão inocente, não faz mal. A gente não fica satisfeito com a pequena dosagem Lá vai o vinho, vai licor, vai pinga, vai maconha, cocaína, coisas mais fortes! É um círculo vicioso. Junto com estes vícios vem que a gente começa a olhar para o outro sexo.





sexta-feira, 20 de setembro de 2013


RUMINANTE

Entre os cavalos do cortejo, havia um que exibia evidente revolta, obrigava o condutor a chicoteá-lo com força crescente e quase derrubava a carruagem: que se explodam a Duquesa da Cornuália, o Arcebispo de Canterbury, a Fanfarra Monumental e o Coro Celestial. Ele não trotava como os outros, não seguiria em frente por conta própria. Os súditos da rainha comentavam sobre a beleza invulgar daqueles cavalos, enquanto agitavam suas bandeirolas e soltavam gritinhos de admiração.


terça-feira, 17 de setembro de 2013



(belos movimentos)

Eis que uma aranha passou sorrateira e se escondeu atrás da estante
eis que um gato branco e cinza desceu a escada e fez um passeio
pelo subsolo do prédio


















Começei a nadar sobre o colchão casa afora
ela tremia com a minha desforra
sua tirânica arrumação
não aguentava o meu nado
nada sincronizado

O meu barco dormia
sobre as ondas
e eu nadava
sem pena da água

quarta-feira, 11 de setembro de 2013



FILA DE CASA LOTÉRICA

Um garoto gorducho com uniforme de colégio público, um senhor grisalho de colar prateado, um outro de meia-idade com óculos pendurados na gola da camisa, um careca comendo pipoca, uma mulher loura com argolas nas orelhas e roupa de ginástica, uma caixa de supermercado uniformizada, uma figura andrógina de preto e encapuzada.

terça-feira, 3 de setembro de 2013


UM DIA NA VIDA

Sair cedo e provar da cidade acordando, mergulhar ao fundo dos olhos recém-abertos da moça que me serve o café. Sorver o café preto, a contrariedade contida, a selvageria quase esquecida do escravo civilizado. Desbotadas promessas, uma gota vermelha e viscosa escorrega pelo rosto dela e cai em cima de minha mão direita. O que fazer do líquido escuro, parado na cavidade entre o polegar e o indicador, o que fazer de tantos olhos à deriva, flutuando perfeitos entre o nada e o lugar nenhum?   

FETICHE DAS MASSAS

Dormia profundamente. De repente sente algo serpenteando no dorso de sua mão, depois subindo braço acima. Dá um pulo da cama, acende a luz: sobre o lençol branco uma lacraia de dez centímetros fazia sua dança pré-histórica. Em pânico, consegue pegar um tênis, puxar o lençol, jogar a lacraia no chão e destruí-la de um só golpe.

Ainda com nojo, lava a pele usada como trilha pelo bicho escroto, enquanto o primeiro pensamento, involuntário e reconfortante, é dedicado aos olhos azuis da gatinha de Ipanema que havia conhecido naquela tarde, quando ela entrou no escritório com sua bermuda de camuflagem nas selvas, suas mãos de unhas impecáveis e anéis dourados, seus cabelos com reflexos brilhosos.

Vai até a cozinha e abre uma coca-cola. Imediatamente beija a boca da latinha com gosto, sem mais preocupação alguma. Confia na estabilidade das coisas, nos seus hábitos antigos, nas tradições familiares.

domingo, 1 de setembro de 2013



DÚVIDA


Dar conta do real antes de sucumbir ao sono, almejar que a razão triunfe sobre o caos diurno pelo qual atravessei incólume, docemente ausente. Um dia inteiro no deserto ruidoso de afazeres, telefonemas e suor. Que serei eu neste fim-de-linha? Serei quem eu quero ou o que quiseram de mim?